14 janeiro, 2009

um tiro

Achei que seria moleza. De certo aquilo era mais fácil do que agüentar um escritório cinza com luzes fluorescentes na cara por oito horas. Nunca consegui me imaginar na fila do café comentando com as outras meninas sobre o novo boy ou sobre as prestações das Lojas Americanas que deveria pagar. Sempre fui uma garota que se sentia atraía pelo lado obscuro da vida, e sempre achei que isso era sinal de personalidade, mesmo quando minha mãe insistia que era algum desvio de conduta. Sorri do palco uma vez que ela veio me ver para crer, continuei rebolando minha bunda branca e sorrindo. Ela naturalmente nunca mais quis me ver.

Não era uma boa dançarina quando comecei. Minhas pernas tortas e finas precisaram de muitas danças na frente do espelho e muita tequila para aprenderem exatamente quando cruzar e descruzar. Acho que foi porque meu pai e meu irmão não abusaram de mim. A minha família era boa e honesta, e isso faz uma garota sair perdendo nesse meio. Eu não tinha dentro de mim a sensualidade ou a maldade que as outras garotas têm. Você já observou uma delas subir num ônibus com um vestido realmente curto? Nada aparece. Absolutamente nada, só a sua imaginação que trabalha. Tic-tac-tic-tac, um sonho. Nós strippers somos grandes vendedoras de sonhos. Você não consegue nos ver num quintal úmido lavando um pano de chão ou matando lacraias. Não senhor. Você não vê nosso traseiro cheio de celulite ou a barriguinha da última gravidez do ultimo babaca que nos prometeu nos tirar dessa vida - como se nós quiséssemos. Você vê Venus, Afrodite, qualquer uma dessas deusas. Você vê nosso corpo se retorcer com as canções que nós achamos que veste o humor do dia. Mesmo que tenha sido um dia ruim.

É assim que eu faço, escolho sempre a melhor canção, me visto dela e subo no palco. Não faço apenas pelo dinheiro, faço também pela música. A música me erotisa mais do que todos os clientes sem face e suas carteiras. Danço até as panturrilhas arrebentarem. Até o cheiro de suor e perfume doce se misturarem e o chão estar coberto pelo aluguel do próximo mês. Essa é a minha vida, e isso é definitivamente melhor do que esperar na fila do café com luzes fluorescentes na cara.

19 setembro, 2008

Pés tortos e vestidos de bolinha

Morria de inveja das outras meninas. Observava pela janela do apartamento o pátio. Lá estavam elas, bonitas com seus vestidos de verão. Chupando pirulitos e fumando cigarros. Marias-chiquinhas tortas e tão charmosas. Os meninos vinham e às vezes elas os seguiam até o banco traseiro dos carros. Pareciam se divertir tanto lá dentro. Ela olhava pela janela. Queria ser como uma daquelas meninas, mas não podia. Era escrava de um corpo sem forma e de cabelos rebeldes demais que jamais comportariam marias-chiquinhas tortas e charmosas.

Quando o dia estava quente elas se deitavam na grama e riam olhando para o céu. Alisavam o cabelo uma das outras e ás vezes pulavam corda. Na escola uma vez, uma delas, a mais bonita de todas, prometeu telefonar. Ela esperou o verão inteiro.

Sábado a noite era ruim. Todas no pátio ou com os meninos no banco traseiro dos carros. Umas tomavam cervejas, outras chupavam pirulitos e fumavam cigarros. Lábios vermelhos como morangos. Riam, davam gritinhos e pulavam de calcinhas de babados e sutiãs cor-de-rosa na piscina de plástico. As mães não estavam em casa. Era sábado a noite e elas estavam seguindo homens para o banco traseiro de caminhonetes ou quartos de motéis. Ela pálida, com o umbigo estufado numa barriga pontuda, disforme no reflexo do espelho.

Domingo a tarde era díficil de respirar. Tudo ficava em absoluto silêncio e a chuva de verão ameaçava cair com força. As meninas não estavam. Deviam estar pintando as unhas de lilás e usando vestidos de bolinhas que mostravam as calcinhas de babados quando se sentavam. Ela usava o cinto do padrasto amarrado no pescoço, mas aquele cinto parecia ser curto demais. Pensou no lençol da irmã de pequenas margaridas. Não pesava mais do que 40 quilos e achou que seria fácil acabar com tudo aquilo. Um menino na escola já havia feito semestre passado e disseram que ele estava nú, mas ela não achava que precisava ficar nua e preferiu usar o vestido que ganhara da avó de natal e que nunca usara porque mostrava demais as costelas nas costas. Nunca havia reparado nas suas costelas até usar aquele vestido horrível. Se olhou no espelho e achou que estava ridícula, pensou que a tristeza que sentia era muito maior do que o corpo que estava presa. Desligou o telefone que nunca tocava e também o ventilador de teto.

Quando as luzes piscavam em azul e vermelho, ela acordou e reconheceu seus pés tortos estendidos. Passou por todas as meninas iguais que olhavam e deixavam para trás os meninos e os pirulitos só para vê-la. Pela primeira vez elas prestavam atenção nela e sentiu algo que jamais havia sentido, finalmente não era mais invisível. Ela havia acertando o placar com elas que nunca ligavam, roubava toda a atenção e estava certa de que iriam falar sobre aquilo durante todo o ano - ela era tão famosa quanto as meninas agora.

Sabia que se tivesse bastante sorte talvez a convidassem para o banco traseiro de algum carro para chupar pirulitos e fumar cigarros, ou fosse lá o que eles fizessem durante os verões.

16 agosto, 2008

escapatória

a paixão o amor e o desamor não
me inspiram
meus mecanismos são mais
profundos
minhas engrenagens são mais
complexas
a vida não me inunda
o vácuo da ambição
e o medo
sim

14 agosto, 2008

o asfalto

Lia Fitzgerald e Hemingway e achava que isso fazia com que tivesse um certo ar de inteligência superior. Tomava expresso em cafés e parafraseava Wilde para as menininhas. Bebia rum, fumava filtro amarelo e gostava de quando Chet Baker cantava.

Nunca aprendeu a dirigir e preferia cruzar a cidade a pé. Chutava pedras no caminho.

Voltava para o apartamento que dividia com outros todas as madrugadas. Algo cheirava a pobre naquele lugar, mas nunca descobriu a origem do mau cheiro, preferia abrir as janelas.

Checava os recados na secretária eletrônica:

- Sinto muito.

O que ela sentia tanto?

Não entendia as mulheres. Como esperavam que ele se apaixonasse sendo todas tão carentes, sem brilho e sem a inteligência superior que ele buscava?

Sentava-se na varanda e fumava. Não sentia vontade de tocar piano. Pensava em Hemingway, na sua falta de senso de humor. Ele próprio não tinha um.

Sua mente era obtusa, cheia de corredores estreitos e aposentos sombrios. Passava horas perdido dentro deles colando pôsteres de si mesmo nas paredes que o convencessem de que ele era o que achava ser, tentando achar uma brecha, algo que pudesse causar uma rachadura nas paredes da represa.

Seria inundado. Se afogaria.

Era formado em direito, mas sempre quis ser escritor. Os pais definitivamente fizeram a melhor decisão. Aquela era uma carreira que dava dinheiro.

Esmagado. Pensava em mudar de cidade, mudar de nome, mas no fundo sabia que as coisas não ficariam melhores.

Escrever doía. Ficava confuso quando tentava, fugia de sentir o que sentia quando se sentava com o papel e a caneta na mão. Era como se tivesse que confessar um crime. Preferia tomar um trago e arrumar algo mais agradável. Ver tv.

Nada.

Outro cigarro.

Pensava em processar a empresa. Todos os dias comprava maços com a certeza de que aquilo o mataria, dia após dia, maço após maço, anos, nada. Sequer tossia.

Na escuridão pensou na sacada do apartamento e no asfalto esperando lá em baixo.

Essas coisas devem ser feitas num impulso, mas teve tempo de ligar e deixar um recado na secretária eletrônica:

- Sinto muito.

E sentia.

08 agosto, 2008

uma cama que não era minha, num corpo que não era meu

Escrever é uma coisa idiota. Perda de tempo que poderia ser útil fazendo alguma outra coisa útil.

Mauricio me dizia enquanto segurava meu cabelo e minha testa enfiada no vaso sanitário.

- Por que você nunca vomita, Mauricio?
- Porque, minha querida, não ouso beber como você.

Íamos para fora do bar fumar um cigarro. Ficávamos parados ali olhando a rua morta e sem trânsito.

- O que quer fazer agora?
- Por que não pega uma cerveja pra mim?

Fumávamos outro cigarro.

Um grupo de rapazes caminhavam e entravam no bar. Mauricio os observava.

- Tem preferência por algum?
- Qualquer um, minha querida.

Entrávamos no bar novamente. Mauricio me deixava para dançar com os rapazes. Ficava sentada, agraciada com a doce sensação de ter o estômago limpo e novo em folha para iniciar o que havia sido interrompido.



Aquele era um lugar nojento, cheio de velhos tarados que olhavam meus peitos. Deveria se chamar "depressing hour", e de repente eu queria sair dali.

- Está com raiva, querida?
- Não, Mauricio. Mas vamos embora daqui?

E as palavras voavam da minha boca sem que eu a abrisse.

- Mas chegamos agora, querida.

Eu tentava me levantar e caia. Pernas filhasdaputa. Mauricio ria.

- Por que você nunca cai?

Ele me segurava firme. Antes de sair me pendurei no pescoço de alguém. Mauricio cruzou os braços impaciente.

- Vai sentir minha falta, querido?

E não me respondiam. Talvez fosse o meu hálito.

Um americano falava sem parar.

- Mister, mister, will you miss me?

Disse que sim e me chamou de baby. Mauricio me resgatou e me enfiou no carro. Os isqueiros me decepcionavam e não acendiam. Tentei aquele do painel do carro.

- Vamos nadar até a lua, Mauricio?

E ele dirigia rápido, cortando a noite como um foguete.

- Por que não me deixa nadar, querido?

A lua nos engolia e eu acordava numa cama que não era minha.

06 agosto, 2008

a companhia do vácuo e pernas dormentes

Estava sentada na bancada de um bar moderninho quando a encontrei. Era raro encontrar qualquer um, mas às vezes acontecia. Ela me reconheceu rapidamente, eu demorei um pouco.

Debaixo de todas aquelas tatuagens e cores diferentes no cabelo, não se parecia em nada com a garota gordinha e de óculos da escola.

- é você?

Agarrada num copo sentou-se do meu lado.

- espero que seja.
- nossa, é você mesmo.

E arreganhou um sorriso naquele rosto com pele de pêssego e cabelos macios. Levantei as sobrancelhas e reafirmei minha identidade.

- nossa, o que você anda fazendo?
- bem, nada muito importante.
- ah, como assim ?
- e você?
- sou escritora e cantora, não me reconheceu?

Não, mas sorri como se não tivesse entendido bem a pergunta.

- estava em Londres terminando meu doutorado.
- legal.

Silêncio. O passado nos atinge das formas mais desagradáveis. E ela disse:

- sempre adorei o que você escrevia na escola, me influenciou muito, por que não continuou escrevendo?

Sorri o sorriso mais largo que pude, peguei minha cerveja e me levantei vagarosamente. Ela me seguiu com os olhos e entendeu. Sentei-me no final do balcão, em um lugar escuro e quieto, bem próximo a saída. Assim era seguro, mais uma tentativa de resgatar o passado e eu estaria fora dali em segundos.

Ela se levantou e foi se encontrar com os amigos na mesa. Era muito digna. Ficaram até às 4 da manhã bebendo whisky e outros drinks caros. Cantaram canções e sairam abraçados. Eu permaneci no canto escuro fazendo companhia ao vácuo até que senti minhas pernas dormentes. Cambaleei para fora do bar e andei muito digna até a minha casa.

04 agosto, 2008

o ventre do nada e do não

não tenho a intenção de ficar rica.
não tenho a intenção de ficar famosa.
não tenho a intenção de me casar,
nem de construir um lar.
não quero família, não quero ser mãe.
não quero ser esposa também.
não quero ser aplaudida ou usada como exemplo
bom ou ruim
deus que me livre,
não.
não quero ser ninguém.
não quero ser mais alta ou mais magra.
não quero viver para sempre.
não quero entrar para a história.
não quero ter uma carreira,
sequer uma profissão.
não quero ser ou ter nada.
nada.
nunca.
não.
nasci do ventre da falta
de ambição

01 agosto, 2008

ratazana, botas de borracha e calcinhas às duas da manhã.

Ficava esperando o telefone tocar, mas ele nunca tocava. Havia preenchido folhas de aplicação para empregos e esperava um retorno. O retorno não vinha, o telefone não tocava, e eu ia ficando mais e mais deprimida. Para quê telefone se ninguém ligava? Podia usar a taxa paga pela linha em coisas que me deprimissem menos.

Dizem que a esperança é a última que morre e isso é mesmo algo terrível. Sou a favor da morte rápida e impiedosa de todas as esperanças. Ficar esperando por algo que não virá é aterrorizante.

Na época, o ponto alto da minha vida acontecia às duas da madrugada. A grande ratazana forçava a minha janela tentando entrar. Eu me levantava furiosa, vestia botas de borracha e com a vassoura na mão lutava contra a grande ratazana. De calcinhas. A principio ela me via e fugia pelo telhado. Eu ficava esperando, vendo se voltava.

Depois de uns meses forçando a minha janela pontualmente às duas da madrugada e me vendo correr com a vassoura na mão, botas de borracha e calcinhas, ela resolveu me enfrentar. Ficava em cima do muro me encarando com seus olhos vermelhos e seus dentes compridos. Eu não alcançava o topo do muro e ela era covarde demais para descer. Ficávamos nos encarando, esperando. Às vezes eu fumava um cigarro enquanto esperava. O vizinho tarado escondido atrás das cortinas. Um grande espetáculo.

Aí ela se cansava e me dava as costas. Rebolava vagarosamente e ia embora. Eu voltava para a cama.

E sempre a mesma coisa. Ouvia os guinchos na janela e corria pra fora. Mesmo se estava frio. De vez em quando ela sumia por dois ou três dias, mas eu sempre podia contar com a grande ratazana. Depois de um tempo começamos a nos sentir confortáveis na presença uma da outra, permiti que ela descesse até o lado mais baixo do muro, pensava em domesticá-la.

Uma madrugada o telefone tocou e fiquei curiosa. Deixei a ratazana no lugar e atendi.

- Me sinto solitária - me disse uma voz feminina.
- Todos nós nos sentimos.
- Mas acho que vou me matar.
- Vá em frente e faça.
- Esse é o problema. Não tenho coragem.
- É mesmo uma pena.

A voz parecia frágil, quase se apagando.

- Não quer vir até a minha casa?
- Acho que não.
- Mas já lhe disse que me sinto solitária.
- Não há cura para isso, infelizmente.

A voz suspirou.

- Posso ligar amanhã?
- Se quiser.

Nos despedimos. Lá fora a grande ratazana havia desaparecido. Nunca mais forçou minha janela às duas da manhã. Mas pelo menos agora o meu telefone tocava.

29 julho, 2008

fracasso com unhas de porcelana

Abria a geladeira várias vezes ao dia só para garantir que não havia nada para comer. Eu ainda tinha ovos. Ovos são mesmo alimentos sagrados, quando apodrecem logo demonstram. Nada de fingir um bom aspecto e nos deixar de cama por dias vomitando as entranhas. Fora os ovos, eu tinha bolachas de água e sal e uma geléia de morango com gosto de vômito. E eu não agüentava mais comer bolachas de água e sal com geléia de vômito. Se eu tivesse que engolir mais uma dessas coisinhas na minha vida, seria bastante frustrante.

Mas sempre pude confiar nos ovos e fazer uma omelete e era o que eu pretendia fazer. Alegrava-me saber que com a geladeira vazia as cervejas gelariam mais rápido.

A essa altura do campeonato os bêbados da minha vida tinham razão: a bebida pode fazer por você coisas que nenhuma outra coisa faz. Um refrigerante, por exemplo, abriria ainda mais o meu apetite e me daria vontade de comer uma macarronada. E que os deuses me livrassem de uma vontade dessas.

Bem, eu continuava trabalhando no escritório cinza que continuava pagando o quarto amarelo. Pagava também minhas bolachas de água e sal com geléia de vomito e a bebida e uns ovos. Eu estava atravessando uma incrível maré de azar. Na maioria dos dias eu me sentia um fracasso, e nos que restavam também. Era duro admitir, mas depois das cervejas geladas ficaria mais fácil.

Meu azar era tão grande que a campainha tocou muito antes delas ficarem frescas.

- ânia...
- meu amor - berrou ela afetada - eu estava passando por aqui e resolvi te visitar.

Os dias de se avisar com antencedência e dar ao próximo bastante tempo para inventar uma desculpa haviam acabado.

- Nossa, você está tão magra e abatida.
- Você parece bem.
- Não pareço? Estou ótima, acabo de chegar de Hamburgo e trouxe milhares de fotos para você ver...

Aquela seria uma longa tarde.

Eu simplesmente não dava sorte. Quando a campainha tocava eu sabia que boa coisa não era, provavelmente algum idiota esperando que você estivesse bêbada o suficiente para ir para cama com ele ou uma idiota que adorava ouvir o som da própria voz e falar sobre toda a sua vida como se você estivesse realmente interessada. Nós nos sentávamos nas grandes almofadas e então elas começavam a falar pelos cotovelos.

Por mais que eu odiasse silêncios desagradáveis, sempre esperava o máximo daquela situação até que a outra parte se incumbisse de colocar em prática uma das duas alternativas: sentir-se desconfortável e partir rapidamente ou dar início a um monólogo comprido. Geralmente as idiotas preferiam falar copiosamente durante horas.

Ânia era esse tipo de mulher. Falava desesperadamente e sem pausa, atropelando as próprias frases. E gargalhava e arrastava sua almofada até a minha e me mostrava e explicava foto por foto. Do seu casamento, da sua lua de mel, da formatura do mestrado, do seu marido dentro de um carrão importado usando verdadeiros ray bans.

Eu desejava que o céu se abrisse e me mostrasse o sentido daquilo tudo. Lá estava eu, muito abaixo do peso, da mesmíssima cor que o escritório, unhas roídas e cabelos revoltos. Nenhum emprego promissor, nenhum marido engomadinho, nenhuma viagem à Europa, nenhum anel de diamantes.

As cervejas iam descer bem até quentes, e Ânia via a oportunidade perfeita para começar um novo e ainda mais interessante assunto: A minha alimentação.

Que essa idéia de ser vegetariana era patética. Que eu deveria beber menos, que eu deveria me exercitar mais, porque mesmo magra eu poderia ter celulite e que nenhum homem se casaria comigo se eu tivesse celulite.

- Suzana me contou que o namorado sugeriu que ela começasse a malhar assim que tivesse o bebê, mas eu já havia dito isso para ela faz um tempão.

Eu já não estava mais prestando atenção, e ela estalava os dedos ruidosamente e perguntava:

- Você não está de porre, está amiga? Porque se você está...

E reiniciava um falatório enorme sobre ser dona da sua vida e dona do seu nariz e uma mulher profissional e amada e perfeita e do século vinte um. Que eu era a menos bem sucedida da escola, e que precisava mesmo fazer qualquer coisa para me ajudar, e que conhecia milhares de ótimos partidos para mim. Que eu só precisava parar de beber. E de fumar. E que precisava maneirar com os palavrões também. Aparentemente os homens não gostavam disso. Mas que ela daria um jeito em tudo porque era a mulher maravilha com dois peitos siliconados, cabelo tingido de loiro e unhas de porcelana.

Por que eu me relacionava com mulheres como aquela? E o mais confuso: Por que elas se relacionavam comigo?

Por fim os deuses fizeram seu celular tocar justo momento em que minhas mãos alcançaram na cozinha a minha faca cega que me servia tão bem para espalhar a geléia nas bolachas.

E passou a murmurar tapando o fone com a mão:

- Sim, sim, querido, estou indo pra casa. Sim, tem jantar no forno. Não meu amor, não fale assim. Sim, sim querido, estou indo. Agora mesmo.

Mal se despediu de mim e correu para fora de casa. Larguei a faca de geléia e abri a geladeira para ver se alguma comida havia aparecido magicamente. Já não tinha mais fome porque a bebida faz por mim algo que nenhuma outra coisa faz.

A noite vinha caindo e eu estava cansada. Deitei na varanda para aproveitar a brisa, e poderia passar o resto da noite sem me mover se quisesse. De alguma forma eu me sentia um fracasso menor.

25 julho, 2008

o grande homem que eu não sou

Ele disse me olhando nos olhos que eu bebia e escrevia como um homem. A principio fiquei em dúvida se aceitava ou não como elogio. Pensei que havia grandes escritores homens de que gostava e poucas mulheres, por fim resolvi aceitar.

Tentei gostar das mulheres durante toda a minha vida. Achava que lhes devia algo. Principalmente àquela que abriu as pernas e disse sim para mim. Achava que devia honrar o meu útero e os seios e a minha capacidade de gerar um feto.

Infelizmente todas as minhas tentativas foram fracassadas.

Não consigo gostar delas.

Não que eu goste dos homens. Isso não. Se precisasse depender de um ou de outro, preferia voltar pra caverna e comer merda. Mas pelo menos eles começaram as coisas. Boas ou ruins.

Não me sinto confortável com o segundo lugar. Principalmente com um segundo lugar que ganha sua esmola de liberdade e escolhe insistir em erros já cometidos antes.

Eu me refiro às mulheres. Sim. Aos úteros que eu não venero.

Mas ele disse me olhando nos olhos que eu bebia e escrevia como um homem. E eu tomei como elogio.

Sentamos no bar e ele falou durante horas. Queria me levar para casa, mas eu não queria. Estava usando sapatos que me apertavam os dedos e aquilo estava se transformando numa tortura.

Por fim pedimos a conta e ele insistiu para que eu entrasse no carro. Disse que preferia andar e ele me seguiu pela rua como um vira-lata. Os sapatos me apertando naquela tortura sem fim e ele falando sobre coisas banais. Até que eu disse que tinha chegado.

Me deu um beijo sem graça e eu entrei em casa. Abri a porta e o gato veio me receber. Sentei na cadeira e liguei o computador.

Imaginei um grande homem se sentando no meu lugar e dando sentido as coisas.

Eu nunca conseguia dar sentido a coisa nenhuma.

o verão na cidade grande

O verão na cidade é cruel. Eu não andava fazendo muita coisa, a não ser reclamar do calor, quando fui convidada para uma festa de noivado. Normalmente não sou convidada para festas de noivado. Normalmente não sou convidada para nenhum tipo de festa. Para ser convidada para festas você precisa conhecer pessoas, e eu não era exatamente uma garota popular.

Mas fui. Meio que sem saber por quê, meio que sem conhecer os noivos. Fui pela bebida e pelo ar condicionado do bar.

Principalmente pelo ar condicionado, o verão na cidade é mesmo cruel.

Cumprimentei a todos com um aceno tímido porque não há nada mais detestável do que o costume idiota de beijar o rosto de estranhos. Me sentei e pedi uma cerveja. Fiquei ali pensando em conversar, mas de dentro de mim não saía nada. Acendi um cigarro e me pediram para ir fumar no balcão perto do banheiro.

Eu fui.
No meio da noite, muitas cervejas depois, eu me pendurava no bar contando coisas pessoais ao barman. Ele fingia me ouvir e me entender, mas não o fazia. Coitado, essa profissão deve ser dura.

Alucinada, sempre vejo pessoas que não conheço e juro que conheço. Eles não são meus amigos, mas dou-lhes tapinhas nas costas e quando se viram não me reconhecem. Sorriem e eu finjo que nada aconteceu. Volto para o balcão.

Os noivos já foram embora. O casamento já deve ter acontecido e eu ocupada fumando na bancada do bar perto do banheiro. Os passarinhos cantam lá fora e já é hora de fechar.

Uma mulher bonita passou de braços dados com um homem bonito. Me senti enjoada.

O verão, assim como todas as estações, é cruel na cidade.

24 julho, 2008

às duas da tarde e semanas depois

Ela queria fazer as unhas e o cabelo num salão perto de casa. Inventei uma desculpa e disse que o cabeleireiro não trabalhava aos sábados. Eu andava deprimida e queria ficar sozinha. Ela resmungou um pouco, mas no final aceitou.

Já deviam ser duas da tarde e eu tomava uma cerveja sentada no sofá. Pensava se ia ou não me levantar e comer alguma coisa. Encarar as paredes em silêncio vinha sendo edificante. Era inverno, mas no Rio de Janeiro isso não existe. Talvez no bairro dos ricos perto do mar. Comparado ao quarto que eu morava, o inferno deveria ser mais fresco.

O telefone tocou:

- Estou aqui em São Cristóvão - disse ela - acabei de cortar o cabelo e ele me garantiu que sempre trabalha aos sábados.

Tomei um gole da cerveja e respirei fundo.

- Fez as unhas também?

- Não, não fiz, não ia dar tempo.

Nanã ficava furiosa quando me pegava mentindo. Mas num dia quente como aquele eu não queria saber sobre unhas ou cabelos.

- Pois é...

- Você está sendo uma idiota, sabia?


E dedicou cinco minutos me explicando por que eu estava sendo uma idiota. Enfim desligou.

Permaneci sentada terminando a cerveja que já começava a ficar quente. Bebo bem, mas devagar. Quando terminei fui até a geladeira buscar outra. Estava fazendo muito calor para um dia de inverno.

Semanas depois Nanã resolveu que iríamos ao shopping. Ligou e avisou que estaria na porta me esperando às 2 da tarde. Não tive tempo de inventar uma desculpa, desligou antes que eu pudesse resmungar qualquer coisa.

Já deviam passar das três e eu estava tomando um copo de vinho sentada no meu sofá. Da varanda da sala eu via as pessoas indo a algum lugar. Era inverno e naquele dia fazia frio. O vento cortava as ruas e subia pelas minhas canelas brancas enquanto o vinho me mantinha quente.

- Estou aqui - disse ela - onde você está?

Tomei um gole do vinho e respirei fundo.

- Olha, eu...

Nanã ficou furiosa, mas não me chamou de idiota. Sequer explicou por que eu estava sendo idiota, ela simplesmente desligou.

Tempos depois apareceu na minha casa. Trouxe umas cervejas e eu deixei que entrasse. Se sentou e falou sobre seus cabelos, suas unhas e sobre o que havia comprado no shopping naquele dia.

Nanã deve andar solitária.

Poros entupidos

Entrei e vi que ele não gostou que eu não tivesse vindo com a roupa que ele tinha escolhido. Parei ao lado da cadeira e ele me ignorou. Continuou rindo com os meninos e acendendo cigarros e chamando o garçom. Fiquei parada, sorrindo meu sorriso mais estúpido, esperando que ele me olhasse e me falasse coisas cruéis como sempre fazia. Não me olhou, não falou.

Preferiu levantar abruptamente e ir dançar. Seu entourage de amigos o seguiu. Fiquei sozinha com cara de nenhum amigo ao lado da mesa agora vazia. E sentei. A bebida era liberada e bebi. Cerveja, whisky, champagne, vinho. Festa de rico. O aniversariante rico não falaria comigo, mas isso já não me importava. Naquela altura do campeonato eu já estava acostumada a ser a minha própria companhia.

Quando pisquei novamente percebi um gorducho oleoso que não parava de falar. E ele estava tão perto do meu ouvido que eu podia sentir a sua saliva se depositar nele. Ele devia ter brotado do chão e achado que podia se sentar ali porque eu não o vi chegando. Essas coisas sempre acontecem quando uma garota decide beber sozinha, sempre há um gordinho que acha que vai se dar bem quando certo nível alcoólico for atingido. E o gorducho falava e falava sobre coisas que eu não estava interessada. Ele estava bêbado. Eu estava bêbada. Mas eu estava calada e ele não calava a boca.

Se não fosse feito de mármore, o meu rosto teria se iluminado quando tive a grande idéia de desobstruir aqueles poros usando o meu drink. Definitivamente aquela era A solução. Lavar aquela cara gorda e oleosa com o meu vinho verde, vermelho ou branco. Já não sabia mais o que estava bebendo, mas não fazia diferença, o meu drink ia purificá-lo. E foi o que o meu drink fez. Voou numa velocidade espetacular, numa curva quase artística e lavou aquele rosto apavorado que se levantou rápido, tentando entender o que o havia atingido de olhos bem abertos.

Foi uma bela expressão a que o cara de porquinho fez, e eu não guardei a minha risada satisfeita. O Sr. porquinho se secando, bufando, e com os olhos ardendo e ficando vermelho. Ficou tão vermelho que ganhei um empurrão imprevisto e caí para trás como um tronco. Cataplof, um sorriso estúpido congelado no meu rosto.

De repente o mundo pareceu entrar em frenesi. Garrafas se quebraram, empurrões, homens estavam agarrados nos pescoços de outros homens, mulheres penduradas nos cabelos de outras mulheres, gritos, os seguranças correndo e o meu dedo médio explodindo em sangue graças a um salto agulha de alguma galinha que corria. Dentro de segundos eu seria esmagada como um tomate e não conseguia encontrar o meu equilíbrio para levantar.

Isso se não fosse aquela cabeleira ruiva que apareceu, se agachou e me puxou para fora. Ela, toda de branco me cravando as unhas no pulso, me puxando para o ar puro. Rapidamente chegamos na calçada. Na rua me dei conta que era Shirley.

Shirley com suas pernas bonitas. Ruiva, corpulenta, pintura de Botticelli. Andava de moto toda vestida de branco e parava para ver as putas. As putas se arrepiavam. Estavam acostumadas com caminhoneiras peludas e quando Shirley se equilibrava no salto puxando assunto, elas iam a loucura, brigavam por aquele lugar na garupa. Shirley dava conta de todas elas. Pintura de Botticelli viva, mas as putas não sabiam quem era Botticelli. E ela me chamava de mulher de Hopper. Nunca conheci uma mulher mais bonita e desvairada como aquela. Seu único defeito era gostar de mulher.

Ela deu uma gargalhada cigana e disse:

- Estragou a festa daquele viado.

Eu sorri com o meu dedo enrolado na camiseta tentando manter a coluna ereta. Dei de ombros.

Sentadas da moto varamos a noite atrás de um hospital.

não acredito e não gosto deles

Não acredito em Deus
nem em filosofia
nem em karma
nem em estilo de vida
nem em cirurgia plástica
faço as coisas sem pensar e
quando soa o tiroteiro
rezo pra nossa senhora
uma reza bem vazia

não acredito nos seres humanos
são cheios de falhas e rachaduras
mal consigo conviver com as minhas
como vou conviver com as deles?
muitos são limitados
a grande maioria o é
não acredito
e não gosto deles.

gritar socorro é inútil

estou cercada
gente que corre e corre
sem chegar a lugar nenhum
gente que agüenta o vazio
gente que não sabe enganar
e se recusa a isso

gente que não dança de olhos fechados
como se a vida dependesse disso
gente que acorda sozinha
com os braços doloridos de abraçar a saudade
gente que bate os braços com força
e não consegue nadar
gente que sabe que gritar socorro
é inútil

trabalhos inexistentes, corações desabitados
verdades que se transformam, trabalhos mecânicos
profissionais da tristeza
profissionais do pânico
a inexistência
ter que aceitar que não há ninguém
em lugar algum

não
existe
ajuda
de um lado do ringue você e do outro
o resto do mundo

viver é seguir em frente como zumbi
o sangue bombeia o coração é teimoso
coisas fantásticas não acontecem com todo mundo
e se o seu número não o for sorteado
gritar socorro é inútil